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sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Enfermeiras Parteiras

Actualmente, os profissionais de saúde que seguem o parto chamam-se enfermeiros especialistas em saúde materna e obstétrica (EESMO). Um nome comprido que acaba, muitas vezes, por ser abreviado para enfermeiros-obstetras ou enfermeiros-parteiros.

As parteiras e os parteiros «de antigamente», esses, estão verdadeiramente em vias de extinção. A última fornada saiu da Faculdade de Medicina de Coimbra em 1982, altura em que o Governo encerrou os cursos de parteiras, para dar lugar a uma nova geração de profissionais, com formação em enfermagem e especialização em saúde materna e obstétrica.

Apesar das diferenças de formação, «parteira» é a designação que continua a fazer sentido para nomear os profissionais de saúde ligados ao parto. Não está, de forma nenhuma, em desuso.

«Parteiras, enfermeiras-obstetras e enfermeiras especialistas em saúde materna e obstétrica significam tudo a mesma coisa, de acordo com as directivas europeias que regulamentam a formação e a actividade», esclarece Dolores Sardo, presidente da Associação Portuguesa de Enfermeiros e Obstetras (APEO) e docente na Escola Superior de Enfermagem do Porto.

Dolores Sardo reconhece que o nome parteira possa ter alguma «conotação negativa, pois, durante muito tempo, profissionais e curiosas misturaram-se». Mas, garante, «agora já não é assim».

A partir de 1986, com a adesão de Portugal à União Europeia, a formação e a actividade das parteiras passaram a ser reguladas por directivas comunitárias. Deste modo, os profissionais podem exercer a sua actividade em qualquer país da Europa. O artigo 4º da directiva comunitária 80/155 enuncia as actividades para as quais as parteiras se encontram habilitadas.

Entre elas, está o aconselhamento em matéria de planeamento familiar, a vigilância da gravidez normal, a prescrição de exames, a elaboração de programas de preparação para o parto, a assistência ao parto normal e o exame ao recém-nascido (ver caixa). No entanto, este artigo não consta no decreto-Lei nº333/87, que transpôs para o direito interno português a directiva europeia.

Por isso, apesar de as parteiras terem essas competências, não existe na legislação portuguesa nenhum documento que explicite as suas actividades. Daí, gerar-se alguma confusão sobre o que podem e não podem fazer.

Entretanto, foi publicada uma nova directiva comunitária (36/2005) com a actualização de documentos anteriores, cuja transposição para o direito português terá de ser feita até Outubro de 2007.

Lúcia Leite, presidente da Comissão de Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, acredita que isso «facilitará o reconhecimento dos decisores políticos para as potencialidades destes profissionais na melhoria dos cuidados na assistência pré e pós-natal».

Enquanto esperam por esse reconhecimento, as parteiras têm de desbravar caminho para poder exercer a sua actividade sem restrições.

Tempo e paciência

Maria de Lurdes Francisco, enfermeira-obstetra há 26 anos, defende que «o poder das parteiras conquista-se na prática durante o dia-a-dia» e lembra o seu próprio exemplo: «Lutei muito para conseguir criar uma consulta de vigilância pré-natal no Hospital de S. João dirigida por enfermeiros. Quando comecei, em 1995, foi muito difícil. Foi preciso alterar comportamentos e acreditar que era possível reformular a consulta». Agora, trabalham oito enfermeiros na vigilância pré-natal, seguindo cerca de 800 mulheres por mês.

Na opinião de Maria de Lurdes Francisco, a mais valia das enfermeiras prende-se com a formação e conhecimento específicos, mas, sobretudo, com a «disponibilidade» e «capacidade de ouvir».

«As mulheres precisam de ser ouvidas e as enfermeiras estão preparadas para isso. Muitas vezes, nas minhas consultas nem digo nada, só oiço. Elas têm muita informação e só querem confirmar as suas competências. Isso dá-lhes segurança», conta a enfermeira.

No Hospital de S. João também são as parteiras que acompanham os partos de baixo risco. A iniciativa partiu de Diogo Ayres de Campos, director da urgência de ginecologia e obstetrícia do hospital.

«Os enfermeiros-obstetras sentem-se mais responsabilizados e os médicos mais aliviados», explica o responsável, sublinhando que é assim que acontece na maioria dos países do Norte da Europa. «Nos países do Sul, a cultura dominante ainda é a de que seja o médico a assistir ao parto».

Tal como a enfermeira Maria de Lurdes Francisco, o obstetra elege a disponibilidade das enfermeiras-parteiras como uma das suas mais valias: «As enfermeiras têm mais tempo e podem dar mais apoio técnico e psicológico às parturientes. Os médicos não conseguem ter essa disponibilidade porque têm também os partos de risco, os partos com complicações e as cesarianas».

Mais de um ano depois da mudança no hospital, Diogo Ayres de Campos está satisfeito com os resultados e garante que as mulheres que ali são seguidas também. «O balanço tem sido positivo. Segundo o inquérito de avaliação à satisfação das parturientes, temos uma avaliação positiva na ordem dos 98%.»

No entanto, o objectivo inicial de Diogo Ayres de Campos era que as parteiras pudessem também admitir as parturientes e a dar-lhes alta clínica.

«Não faz sentido serem as enfermeiras a fazer tudo e depois terem de chamar os médicos para assinar os papéis. Por isso, mandei uma proposta para o Colégio de Obstetrícia da Ordem dos Médicos e para a Comissão de Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, que manifestaram o seu acordo imediatamente. Na mesma altura mandei também a proposta para a Administração do hospital, mas até hoje não obtive qualquer resposta», lamenta.

Faltam parteiras ou não?

No final de 2006, estavam registados na Ordem dos Enfermeiros 1699 enfermeiros-obstetras. Um número escasso, na opinião de Lúcia Leite, para que os profissionais possam alargar a actividade ao seu leque de competências.

«A carência de profissionais que se fez sentir nos últimos anos, em consequência de um período em que a formação foi manifestamente insuficiente para as necessidades, levou a que a maioria das enfermeiras especialistas em saúde materna e obstétrica trabalhe hoje nas salas de partos das maternidades portuguesas».

No entanto, a responsável acredita que, com as actuais 13 escolas da especialidade existentes em Portugal, «será possível, a curto prazo, rejuvenescer o grupo profissional e assumir outras áreas de actividade onde a cobertura é escassa».

Dolores Sardo tem a mesma opinião: «Diz-se muito que em Portugal não há parteiras, mas isso não é verdade. Existem enfermeiras suficientes para assistir aos partos. O número de profissionais nos cuidados de saúde primários é que é reduzido. Em parte porque também não estão a ser criados lugares», critica.

Lúcia Leite fala ainda de «desperdício de recursos», referindo-se aos profissionais que se encontram a «exercer a sua actividade fora do âmbito da saúde materna e obstétrica».

A representante dos enfermeiros-obstetras não tem dúvidas de que «dar melhor resposta na assistência pré-natal passa pela colocação de enfermeiros especialistas em saúde materna e obstétrica nos centros de saúde».

De facto, em algumas unidades são já os enfermeiros-obstetras que fazem a vigilância da gravidez, em conjunto com o médico de família. Apesar desta evolução, o número ainda é muito reduzido.

A própria Organização Mundial de Saúde considera a parteira como «a profissional de saúde mais indicada para acompanhar a gravidez e o parto normais, avaliar os riscos e reconhecer os sinais de complicações», conforme pode ler-se no documento «Assistência no parto normal: um guia prático» (Care in normal birth: a practical guide).

Os enfermeiros-obstetras portugueses apontam o exemplo do Reino Unido e da Holanda como países onde as competências destes profissionais são valorizadas e onde grande parte das grávidas de baixo risco é seguida por parteiras desde o início da gestação até ao puerpério.

Segundo dados do Governo britânico, referentes ao ano de 2004/2005, 64% dos partos foram assistidos por parteiras, contra 36% que foram seguidos por médicos. O mesmo documento indica ainda que 48% dos nascimentos resultaram de «partos normais», definidos como «partos sem intervenção cirúrgica, uso de instrumentos, indução, epidural ou anestesia geral».

Algo que em Portugal ainda está muito longe de acontecer, tendo em conta as elevadas taxas de cesariana (cerca de 30%) e episiotomia (que chegam a 90% em alguns hospitais).

Poderiam ser as parteiras a mudar esta situação?

«Acreditamos que é possível oferecer em Portugal ambientes de parto humanizados e seguros onde a intervenção profissional e tecnológica esteja reduzida ao mínimo. Para garantir segurança e qualidade não é necessário cuidar de todas as gestantes como se fossem de risco, nem vigiar todos os trabalhos de parto como patológicos!», defende Lúcia Leite.

Para Dolores Sardo, a génese da mudança está também nas mãos das mulheres: «Tenho dúvidas de que os profissionais, parteiras ou médicos, possam contribuir sozinhos para a humanização do parto. As mulheres têm de ter conhecimentos e exigir melhores cuidados».

Maria de Lurdes Francisco critica ainda aquilo a que chama a cultura do médico: «A enfermeira-obstetra tem mais competências para fazer a vigilância da gravidez do que o médico de família, mas em Portugal ainda se pensa que só os médicos é que sabem», analisa, apelando à mudança de mentalidades por parte das mulheres. «Querem fazer muitos exames e muitas ecografias e isso nem sempre é necessário.»

Parto em casa

Do lado oposto, as mulheres que querem um parto com o mínimo de intervenção optam cada vez mais por ter os filhos em casa.

Em Portugal, o número de partos domiciliários ainda não é significativo, mas Dolores Sardo admite que «se houver uma rede de suporte, essa possibilidade pode ser reabilitada».

No entanto, a presidente da APEO faz questão de frisar que a humanização do parto não é necessariamente sinónimo de nascer em casa. «Acho que podemos fazê-lo também nos hospitais», continua Dolores Sardo, explicando que para isso os enfermeiros precisam de ser mais autónomos. «A APEO tem-se debatido por mais autonomia junto da Ordem dos Enfermeiros, mas as coisas demoram o seu tempo».

Lúcia Leite defende que «o parto natural pode ocorrer no hospital, na clínica, numa casa de parto ou no domicílio. O importante é minimizar as intervenções humanas e tecnológicas, garantindo cuidados seguros e de qualidade».

Ainda assim, os profissionais que acompanham partos em casa preferem falar deste assunto com cautela. A., enfermeiro-obstetra, trabalha num hospital público e acompanha partos em casa. Aceitou falar da sua experiência apenas sob anonimato, justificando a decisão com «uma pressão institucional muito grande».

Desde que começou a seguir partos em casa, há cerca de seis anos, A. admite que mudou a sua atitude na forma como se relaciona com a parturiente no hospital.

«Só quando vi uma mulher dar à luz, em casa, sem nenhuma intervenção, é que percebi a verdadeira biofisiologia do parto, pois a nossa formação é muito clínica. Agora tento respeitar o ritmo da mulher, tanto quanto me é permitido. Não posso ir contra o sistema», lamenta.

Em casa ou no hospital, as parteiras portuguesas estão decididas a mostrar o seu valor à população. Este ano, a APEO vai juntar-se à International Confederation of Midwives (ICM), entidade da qual é associada, para celebrar o dia internacional da parteira, a 5 de Maio.

A ICM promove a iniciativa desde 1992, mas em Portugal vai ser o segundo ano consecutivo em que a data será celebrada. No ano passado, as actividades foram apenas dirigidas a profissionais, mas este ano, à semelhança do que acontece noutros países, as comemorações vão ser direccionadas ao público em geral.

«Estamos a pensar realizar actividades com a população para esclarecer e desmistificar a nossa função, com publicidade e sessões públicas», esclarece Dolores Sardo. Quem sabe se não será o início de uma bela amizade.


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